Apesar de a legislação brasileira que envolve a
economia solidária e as licitações apresentarem algumas possibilidades para
esta parceria, não há dúvida que as aquisições públicas não são pensadas para
este setor.
1 Introdução
A
Economia Solidária, como uma forma de produção, consumo e distribuição de
riquezas associada e autogerida, centra-se no ser humano e na dignidade do
trabalhador, formando um importante movimento contracircular na economia
centrada no mercado e no capital.
A
inexistência de um marco legal para a área traz sérias dúvidas e dificuldades
jurídicas para os empreendimentos solidários em vários aspectos como
formalização jurídica, tributação e o acesso às aquisições públicas.
Considerando
que são várias as formas que os empreendimentos solidários podem assumir e que
o Estado brasileiro é um grande consumidor de produtos e serviços e fomentador,
por excelência, de políticas públicas que o movimento de Economia Solidária tem
imenso interesse em atender e participar, este artigo aborda, então, como as
licitações públicas incidem sobre estes empreendimentos, dependendo da forma
que eles adotam, tanto para selecionar entidades parceiras, como por parte
destas para contratação de terceiros.
Este
trabalho, portanto, tem um claro viés panorâmico e instrumental. Seus objetivos
são, tão somente, apresentar àqueles que fazem parte do setor da economia
solidária como está esta relação atualmente e as perspectivas que estão postas
no cenário jurídico.
Para
tanto, vai se basear na legislação federal vigente e em discussão envolvendo o
tema das licitações e da economia solidária, e nos entendimentos dos Tribunais
superiores (Supremo Tribunal Federal – STF, e Superior Tribunal de Justiça –
STJ) e de Contas da União (TCU).
2
As formas jurídicas da economia solidária
Não
há hoje no ordenamento brasileiro um conceito jurídico que defina economia
solidária. De qualquer forma, é inafastável sua dimensão econômica, entendida,
conforme dispõe o site da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES),
do Ministério do Trabalho e Emprego (TEM) como
uma das
bases de motivação da agregação de esforços e recursos pessoais e de outras
organizações para produção, beneficiamento, crédito, comercialização e consumo.
Envolve o conjunto de elementos de viabilidade econômica, permeados por
critérios de eficácia e efetividade, ao lado dos aspectos culturais, ambientais
e sociais.
A
economia solidária se organiza sob diversas formas, sendo que nem todos
alcançam ter personalidade jurídica. Na economia solidária são válidos e
legítimos, inclusive, os grupos informais que se dedicam a produção de bens e
de serviços, distribuição, consumo ou crédito, com base nos princípios próprios
do setor, a autogestão, a cooperação e a solidariedade.34
As
formas jurídicas mais utilizadas e que mais são compatíveis com os
empreendimentos solidários são as cooperativas, mas também há as associações, que
podem receber, ou não, uma série de titulações ou qualificações, mais ou menos
apropriadas para os propósitos econômicos e laborais que orientam a economia
solidária; e até mesmo empresas.
2.1
Cooperativas
As
cooperativas são um tipo de sociedade, o que no direito brasileiro significa
que são pessoas jurídicas com fins econômicos. Por isso sua adequação aos
empreendimentos de economia solidária. Têm previsão expressa na Constituição de
1988, decorrente do direito de associação (art. 5º, XVIII) e como instrumentos
da ordem econômica nacional (art. 146 e 174, entre outros), suas linhas gerais
delineadas pelo Código Civil (art. 982; 1093-1096; 1159, Lei 10406/2002), e são
regidas por legislação específica (Lei 5764/1971, lei geral de cooperativismo,
e Lei 9867/1999, sobre as cooperativas sociais).
As
cooperativas são sociedades simples, o que significa que têm natureza civil e
não desenvolvem atividade empresarial, calcada na organização do trabalho
alheio (art. 966, Código Civil), não estando sujeitas à falência (art. 4º, Lei
5764/1971).
Nas
cooperativas as pessoas “reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou
serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem
objetivo de lucro”, (art. 3º) organizadas com base nos princípios
cooperativistas (como propõe a Aliança Cooperativa Internacional e foi
reconhecido no art. 4º, Lei 5764/1971). Devido a suas peculiaridades, recebe
tratamento tributário próprio e que apresenta uma certa complexidade.
As
cooperativas sociais, como o nome indica, são um tipo especial “constituídas
com a finalidade de inserir as pessoas em desvantagem no mercado econômico, por
meio do trabalho, fundamentam-se no interesse geral da comunidade em promover a
pessoa humana e a integração social dos cidadãos” (art. 1º, Lei 9867/1999)
Apesar
das cooperativas poderem ter por objeto qualquer gênero de serviço, operação e
atividade, as especificidades e o impacto que as cooperativas de trabalho têm
demonstrado nos últimos anos5 está impulsionando a criação de uma regulamentação
própria que coloque fim aos desvios a que este tipo de cooperativa vem se
prestando, estabelecendo direitos trabalhistas mínimos.6
Também
há projetos de lei que propõe uma nova Lei de Cooperativas, estando em jogo
pontos polêmicos como o monopólio da OCB na representação e registro do
cooperativismo no Brasil, admissão de pessoas jurídicas com fins lucrativos
como sócios, entre outros.7
2.2
Associações
As
associações são uma decorrência natural do direito constitucional de
associação, insculpida no art. 5º, XVII a XXI.
São
pessoas jurídicas constituídas pela união de pessoas que se organizem para fins
não econômicos (art. 53, Código Civil), e esta característica é um complicador
para servir de base para a organização de grupos de economia solidária.
Quando
não há remuneração de seus dirigentes nem distribuição de lucros entre os
associados, está isenta do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (Lei 9532/1997,
art. 15).
A
partir da sua criação podem se habilitar a receber títulos e qualificações do
Poder Público federal, estadual ou municipal, de acordo com os requisitos
específicos de cada um.
Para
a economia solidária, as associações sofrem de uma limitação quanto às
finalidades econômicas que se busca, podendo sofrer questionamentos se houver
distribuição de recursos entre seus associados e/ou aplicação de recursos para
fins diversos do que a própria associação.
a)
Organizações sociais (OS) – Lei 9637/1998
Exclusiva
para pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos8 que atuam na
área de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e
preservação do meio ambiente, cultura e saúde (art. 1º), esta qualificação é
dada de forma bastante livre9, pelo responsável da pasta correspondente (art.
2º), da União, Estados ou Municípios, e de modo exclusivo.
É
uma instituição híbrida, na medida em que pode (visa?) absorver atividades até
então desenvolvidas pela Administração Pública (art. 18-20), com a
possibilidade de receber a destinação de recursos, bens (crédito orçamentário)
e até pessoal (com ônus para o poder público) (art. 11-15), mediante a
assinatura de contrato de gestão (art. 5º-8º). Em contrapartida, a
Administração Pública parceira tem assento em seu Conselho de Administração
(art. 3º).
b)
Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) – Lei 9790/1999 e
Decreto 3100/1999
Conhecida
como o marco regulatório do 3ª Setor, é uma qualificação federal dada pelo
Ministério da Justiça a qualquer associação ou fundação que atenda às
exigências legais de apresentar determinados requisitos, dentre eles ter como
finalidade alguma das áreas listadas no art. 3º 10, e não desenvolver qualquer
das atividades do art. 2º 11. Esta qualificação visa alcançar as entidades de
fins efetivamente altruístas, e permite que as OSCIPs, e apenas elas, firmem
termos de parceria (art. 9º-15), além de seguir permitindo os convênios. Também
possibilita a profissionalização da gestão da entidade, na medida em que
permite remunerar seus dirigentes e prestadores de serviço, sem perder a
imunidade do imposto de renda. Por fim, esta qualificação impede a acumulação
com outros títulos ou qualificações federais (art. 18).
c)
Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS) – Lei
12101/2009
Esta
certificação e sua renovação são conferidas pelos respectivos ministérios “às
pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, reconhecidas como
entidades beneficentes de assistência social com a finalidade de prestação de
serviços nas áreas de assistência social, saúde ou educação, e que atendam ao
disposto nesta Lei” (art. 1º), obedecendo ao princípio da universalidade. Tem
validade de 1 a 5 anos, conforme os critérios estabelecidos em regulamento por
área de atuação.
É
um certificado que garante grandes vantagens tributárias, com a imunidade de
impostos (art. 150, VI, c, Constituição de 1988) e a isenção de contribuições
para a seguridade social (20% sobre a folha de pagamento da entidades) (art.
195, §7º, Constituição de 1988; e art. 22-23, Lei 8213/1991).
Além
disso, abre a possibilidade de recebimento de subvenções sociais (despesas de
custeio) e auxílios (recursos de capital, para investimentos independente de
contrapartida) (art. 16, Lei 4320/1964 e LDO anuais).
É
uma certificação que pode ser muito útil à economia solidária nas áreas que ela
alcança.
d)
Utilidade Pública Federal (UFP) – Lei 91/1935 e Decreto 50517/1961
Esta
titulação é concedida pelo Ministério da Justiça a todas as entidades com mais
de 3 anos de existência, que não tenha sua Diretoria remunerada e que tenham
como fim exclusivo servir desinteressadamente à coletividade promovendo
atividades de educação, pesquisa científica, cultura ou filantropia, estas de
caráter geral ou indiscriminado, predominantemente.
É
interessante notar que
nenhum
favor do Estado decorrerá do titulo de utilidade publica, salvo a garantia do
uso exclusivo, pela sociedade, associação ou fundação, de emblemas, flâmmulas,
bandeiras ou distinctivos proprios, devidamente registrados no Ministerio da
Justiça e a da menção do titulo concedido. [sic] (art.
3º, Lei 91/1935)
Ou
seja, a UPF não dá qualquer vantagem tributária ou de parceria para as
entidades com este título. Permite, no entanto, que a doação de particulares
seja deduzida do seu imposto de renda (Lei 9249/1995, art. 13, 2º, II, c), e o
recebimento de produtos apreendidos pela Receita Federal.
e)
Utilidade Pública Estadual e Municipal
Estes
títulos dependem de regulamentação em cada esfera da federação, que vai
estabelecer os critérios para que ele seja recebido pelas entidades, bem como a
previsão, ou não, de benefícios.
2.3
Outras formas societárias
Além
das cooperativas, os empreendimentos solidários podem assumir outras formas
societárias. O Código Civil (CC) prevê a existência de sociedades simples e
empresárias12, sendo estas últimas as que se constituem com o fim de realizar
“atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de
serviços” (art. 966, CC), calcada na figura do empresário e sujeita a registro
próprio (art. 982, CC).
Há
vários tipos de sociedades empresárias previstas no Código Civil entre os art.
986 e 1092, de acordo com sua constituição (sociedades não-personificadas: em
comum e em conta de participação; sociedades personificadas: em nome coletivo,
em comandita simples, limitada, anônima, em comandita por ações). As sociedades
simples, com exceção das cooperativas e daquelas em conta de participação,
podem se constituir sob qualquer destas formas (com exceção das sociedades
anônimas13, exclusiva das sociedades empresárias) ou submeter-se a normas
próprias (art. 983, CC).
Não
há consenso no movimento de economia solidária que as sociedades empresárias
possam ser uma forma de constituição jurídica dos empreendimentos solidários,
vez que se pautam na organização do trabalho de outrem com claro objetivo de
lucro daquele que é o sujeito ativo da empresa (empresário ou sociedade
empresarial). De qualquer forma, a efetivação de princípios de solidariedade,
autogestão e cooperação não são exclusividade de uma forma jurídica e tampouco
há qualquer vedação legal a respeito disso e o próprio Anteprojeto de Lei da
Economia Solidária não o faz14. Neste sentido, não é incomum empreendimentos de
economia solidária se organizarem sob forma de sociedades limitadas, onde “a
responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos
respondem solidariamente pela integralização do capital social.” (art. 1052,
CC)
Vale
chamar a atenção para o Estatuto da Microempresa e da Pequena Empresa15 (Lei
Complementar 123/2006), que, admite as sociedades limitadas e, ao contrário do
que o nome poderia fazer supor, engloba também as sociedades simples, com
exceções (art. 3º, § 4º). Esta lei traz um grande avanço no que se refere a
tributação e às licitações como instrumento de política pública para um setor
econômico, como se verá adiante.
3
Licitações e parcerias (convênios, contratos de repasse e termos de parceria)
A
Constituição de 1988 trouxe as licitações para dentro do seu texto, obrigando
sua realização por toda a Administração Pública (direta ou indireta, de
qualquer dos poderes e esferas da federação) para a contratação de obras,
serviços, compras e alienações, ressalvados os casos previstos em lei,
assegurando igualdade de condições a todos os concorrentes (art. 37, XXI).
A
União tem a competência privativa para legislar sobre
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Aline
Sueli de Salles Santos*
Professora
efetiva de Direito da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e colaboradora do
Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), mestre em Direito pela Unisinos
e doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). É especialista em
Direito Administrativo pelo IDP e conselheira da Comissão de Anistia do Ministério
da Justiça.
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